Pensava que já vos tinha contado a história dos cantos cá do meu burgo, mas afinal a coisa ficou-se pelo meio; quer dizer, disse algumas coisas acerca dos cantos no post da briga do viajante e , na descrição da ida à escola do Manel houve mais umas pinceladas acerca dos bairros (a que nós chamamos cantos), mas, nunca mencionei um canto a que nós carinhosamente chamamos Jardim zoológico. Como verão, o nome de Jardim Zoológico nada tem de depriciativo para os seus habitantes, mas, tal nome deve-se ao facto de num local que não terá mais do que um quilómetro quadrado viverem famílias cujas alcunhas são as seguintes:
João Freitas = o lobo
João Rosendo= o raposo
Manuel Bento= o sapo
Joaquim Fidalgo= o grilo
Manuel "caramelo"= o rato
Emília Castela= a rata
Joaquina Silva=a sardoa
Ana Felício= a sardanica
Amandio Manoca=o sardão
António Freitas= o papagaio
Joaquim Máximo = o pisco
Existirão mais umas quantas alcunhas por herança de pais para filhos e que terão diminuitivos da alcunha originária; existem por isso os ratitos (filhos do rato ou da rata) etc. O importante é, que todas estas famílias vivem no mesmo canto.
Dá para entender agora, a maneira carinhosa com que o único habitante daquele canto que não tinha nome de bicho, o baptizou com o dito nome de Jardim Zoológico. Claro que, este habitante também tinha alcunha; "era: Maximiano Rodrigues= o bandeirinha".
Convém dizer que a maioria dos habitantes nados e criados em Fazendas de Almeirim tem alcunha e, na maioria das vezes é por ela que respondem chegando quase a esquecer o seu próprio nome.
Pois bem, foi esta a razão que me levou a por no titulo do post a alcunha dos personagens que pretendo hoje retratar.
Primeiro o Galdério; de nome próprio Caetano Tomé, este personagem filho varão de um abastado (salvo seja) proprietário agricola, morador no canto de Nova Lisboa, ainda mancebo travou-se de amores por uma donzela filha de outros abastados (salvo seja) proprietários agricolas que se julgavam num escalão acima dos pais do Caetano Tomé . Pois bem, não se sabe se por opção da donzela ou imposição da família, o namoro jamais se concretizou.; esta foi a história que me foi contada por minha mãe, prima do personagem.
Levado por desgosto, mas sobretudo pelo seu espírito aventureiro, o Caetano meteu manta e pau (leia-se cajado) às costas e sem dizer palavra foi-se embora para ir correr mundo. Durou anos a ausência do Caetano que, não foi bem vista pela poipulação do lugar, já que, naqueles tempos saír sem dizer palavra deixando a família a sós na labuta do campo era falta grave e dificilmente desculpável.
Não se sabe muito das aventuras do Caetano nos tempos que passou na galderice (daí o nome de Galdério) mas, uma coisa é certa; o Caetano andou por tudo o que foi Alentejo, trabalhando na lavoura e guardando gado. Eram tempos dificeis aqueles! De tal modo, que vencido pela fome e pelo frio, o Galdério uma noite regressou a casa do pai, que à primeira vista não o reconheceu.
Usava, disse-me ele, um grande bigode com as pontas reviradas o que lhe dava um ar de salteador de estrada. Claro que quando o reconheceu, o pai o recebeu de braços abertos; mas, a população demorou bastante tempo a assimilar o Galdério; quer dizer: o Galdério era aquilo que hoje se diz "personna non grata".
Dado que convivi com o Galdério não resisto a contar uma pequena passagem das muitas que me contou nos tempos que com ele privei. Diga-se, que por essa altura o Galdério já teria setenta e muitos anos e eu era, um menino homem de doze.
O Galdério, sem saber exercia sobre mim fascinio, porque bem no fundo, eu também aspirava a ser maltês de pau e manta, só que, perante tal desejo fui presenteado por minha mãe com uma monumental tareia que me levou a esquecer esses impetos aventureiros.
Por falar em tareia, lá vai então a história de que vos falei; Contou-me o Galdério, que certa vez nos arredores de Mértola roído de fome (há já dois dias que só fumava e bebia água) e com um aspecto assustador, pois a barba estava crescida, o bigode farfalhudo em desalinho , as roupas já sujas e rasgadas, enfim, o aspecto de salteador de estrada já que na época havia muitos destes malandros.
O bom do Galdério com o estomago a reclamar, lá pensou como havia de ter lauta refeição à borla e, vai daí, pôs os neurónios a funcionar e, achou que o seu aspecto não era o de um salteador, mas sim de um apóstolo ao serviço de Deus. Sucede porém, que a mulher de um abastado lavrador da zona padecia de doença crónica incurável e, essa era a oportunidade do Galdério se apresentar ao lavrador como apóstolo enviado pelo divino com a finalidade de curar a senhora. Teve azar o nosso Galdério por dois motivos: 1º porque antes de iniciar qualquer acto milagroso exigiu uma refeição que constasse de borrego de caldeirada, e claro, regado a bom vinho; 2º o lavrador era um ateu e não acreditava em qualquer milagre viesse lá de onde viesse! Resultado: o Galdério levou uma sova das que deixam marcas e quando fugia a bom fugir ainda teve que trepar a um sobreiro pois um cão largado em sua perseguição teimava em lhe danificar ainda mais as roupas e a pele. Contou ele que este foi o acontecimento que o fez regressar a casa dos pais que, como disse, só o receberam quando tiveram a certeza de que era ele realmente, tal era o seu aspecto.
A Ana Sardanica, rapariga de mau génio e parcas carnes, de quem a beleza se tinha distanciado vivia atormentada com a possibilidade de ficar solteirona, o que, lhe aumentava ainda mais o mau génio. Diga-se, que de cada palavra da Ana Sardanica resultavam quartro ou cinco pragas das mais marcantes. Contudo, era possuidora de uma vontade indómita de trabalhar, pois com essa atitude mostrava às outras (as bonitas e de fartas pernas e peito)que lá por ser pequenina não era menos que ninguém, ou seja, procurava suplantar-se a todas fosse no que fosse.
Apesar de todas estas qualidades a Ana não arranjava namorado e, claro, o Galdério pelo seu passado também não.
Por isso, o Galdério lá fisgou a Ana Sardanica e juntaram os trapinhos! Convém dizer que o Galdério era homem que exercia algum fascinio sobre as outras damas, pois era rapaz bem parecido e o seu passado incógnito alimentava as histórias mais incriveis passadas com mulheres das terras por onde andou . Isto atormentava a Ana Sardanica que permanentemente descarregava a sua bilis no pobre do Galdério, que respondia com algumas tareias. Como deven calcular as discussões entre o Galdério e Ana Sardanica eram temperadas com um chorrilho de pragas ditadas pela Sardanica que levavam a vizinhança a babar-se de gozo, pois enquanto ela praguejava em tom normal e quezilento, o Galdério com a sua voz de tenor fazia-o com quanta força podia. Por isso, quer brigassem dentro ou fora de casa, as discussões tinham caracter público.
Com o decorrer dos anos o Galdério perdeu o fulgor; a Ana Sardanica continuou a rogar pragas, que´agora eram dirigidas em quantidade e qualidade consoante o Galdério voltasse a casa mais ou menos bêbedo, sendo frequente as vezes em que chegava mais que menos.
Reforçando o que se disse quanto à sua vontade de demonstrar que era mais forte que as mulheres ditas fortes, será bom lembrar que a Ana Sardanica quando se deslocava à Charneca para trazer lenha com que havia de fazer as refeições, transportava à cabeça um feixe de lenha de tal modo grande que, visto a certa distância dava a sensação que o feixe se deslocava sózinho, poi não era possivel vislumbrá-la devido à sua pequenês.
Não posso deixar de contar um pequeno episódio(dos muitos) ocorrido com a Sardanica em dia de manhã soalheira:
Já velhota, estava a Ana Sardanica sentada em frente da casa a costurar e, como habitualmente rogando pragas por já não ver bem a costura; então, dois sobrinhos netos que brincavam próximo querendo ouvir mais umas pragas form buscar uns óculos de soldar a electrógénio e disseram; tia ponha estes óculos que é para ver melhor; esperando claro que ela os invectivasse com uma pragas que só ela sabia rogar ;enganaram-se, pois a dita Sardanica agradeceu comovida aos sobrinhos dizendo que estava a ver que era uma maravilha. Claro que não ficaram sem a doze de pragas pois passados uns momentos a Sardanica começou a picar os dedos com a agulha e aí, nem Deus escapou.
Nota: conheci pessoalmente estes personagens e privei durante algum tempo com o Galdério, pois quando os anos já pesavam muito, o Galdério tomava algumas refeições na casa de minha mãe, sendo o cacau com leite ao pequeno almoço o que mais o confortava.