Hoje, tal como muitas vezes dei por mim a imaginar o nosso cérebro em termos de memória.
Mesmo tendo presente a realidade da imagem da nossa massa cinzenta, ainda consigo viajar ao mundo da fantasia e idealisar o cérebro da mesma maneira como o fazia em menino.
Para mim, nesses tempos de felicidade plena, o cérebro representava um enorme armazém composto por imensos compartimentos onde eram guardads as recordações. De um lado as boas, do outro as más, mas todas muito bem organizadas, para que em qualquer momento fosse fácil aceder-lhes. Esse armazém super arrumado era a memória. Verifico agora, com o passar dos anos e o avanço da ciência, que as memórias electrónicas funcionam exactamente do modo que eu "e provavelmente os meninos da minha geração" imaginava a nossa.
Bom, mas a memória de que hoje me socorro, continua a ser aquela da minha meninice, e, ao puxar uma gaveta dessa memória, saiu a história que vos vou contar. Haverá alguns, que ainda terão presente a narrativa, mas é especialmente para os mais novos que tiverem a paciência de ler até ao fim, que ela inteirinha vai.
Nos idos anos de 50, (milénio passado) as Fazendas eram (como já algumas vezes disse) um lugarejo disperso formado pelos seus agregados populacionais a que chamavamos cantos; era pois normal dizer-se que fulano era do canto da serra, ou do canto negro, ou do canto da baixa etc. Pese embora a rivalidade que sempre existiu entre os cantos, rivalidade deverá ser encarada no bom sentido, dado que, a dita era normalmente de ordem económica e de conquista de estatuto social, ou seja: quanto mais rico se fosse, mais importância social se auto atribuía. À parte esta rivalidade, as pessoas entendiam-se perfeitamente e funcionavam como se de um clan se tratasse. As estradas eram quase inexistentes, e as que havia eram de terra batida, sendo um mar de lama no Inverno, e uma nuvém de pó no Verão. Havia ainda a tremenda rivalidade desportiva,ou melhor, rivalidade entre Sportinguistas e Benfiquistas. Note-se, que muito embora os clubes de Lisboa estivessem na origem dos nomes, a rivalidade era entre Sportinguistas das Fazendas (quase todos moradores no canto da Baixa) e Benfiquistas das Fazendas (quase todos moradores nos outros cantos). A rivalidade era de tal ordem que havia dois campos de futebol e duas sedes associativas. Havia pois, o campo e sede do Sporting e o campo e sede do Benfica. Estas rivalidades eram instigadas e mantidas em permanente conflito por dois caudilhos, cada um exercendo influência no seu canto. Se a gaveta onde estava guardada esta recordação não a deteriorou, os caudilhos que na época mantinham acesa a rivalidade, eram pelo canto do Sporting o Snr Augusto Brito e pelo Benfica o Snr José Ferreira.. Era, apesar de tudo, uma rivalidade não conflituosa, salvo quando havia investidas dos rapazes de um canto aos bailes dos cantos rivais. Então sim, raro era o baile que não terminasse com cenas de pugilato com mulherío metido pelo meio.
Mas, um acontecimento havia, que fazia esquecer todas as rivalidades entre os bairros e aglutinava toda a população em torno desse acontecimento; era a Festa das Fazendas! Desde a preparação da festa até à procissão do Padroeiro S.José, eram esquecidas todas as quesílias e havia como que, uma aura de felicidade a que ninguém ficava indiferente. Na noite do fogo voltava a haver rivalidade, mas desta vez entre as mulheres que se aprimoravam na preparação das fogaças (só para os mais novos: fogaça era um cesto redondo composto por iguarias, tais como: galinha corada no forno com arroz, uma ou duas garrafas de vinho, arroz doce, bolos secos e pão de ló, tudo muito bem enfeitado com flores de papel) que à cabeça das fogaceiras desfilavam no palco e eram arrematadas em leilão pela assistência. Era considerada vencedora, a fogaça que rendesse mais dinheiro, havendo também um prémio para a fogaceira mais bonita ou mais bem arranjada.
Como tinha dito no início do escrito, as estradas eram a realidade descrita, sendo excepção a estrada principal que começava no início das Fazendas, e acabava no Queiroz da madeira. Esta estrada era de macadame (espécie de saibro com pedra moída) não lhe faltando os respectivos buracos e os altos e baixos provocados pelas rodas de ferro das carroças. A festa das Fazendas, decorria exactamente no largo da Igreja (hoje a igreja velha) e na estrada frontal ao largo da Igreja, sendo a estrada o local o bailarico, o que, devido à irregularidade do piso permitia aos que não sabiam dançar fazê-lo como os que o sabiam, mas sempre no meio de uma nuvem de pó proveniente da estrada. Resta ainda acrescentar, que a luz elétrica que iluminava o recinto das festas era proveniente de um gerador que por algumas vezes se recusava a funcionar deixando o recinto na escuridão, facto que era aproveitado pela rapaziada deitar a mão aos marmelos da moçoila prometida sem que o olhar da mãe se desse conta. De qualquer modo, a iluminação centrava-se no palco onde decorria a maior parte dos eventos.
Ora, foi durante a noite do sábado do fogo, (início das festas e queima de fogo de artificio) que se desenrolou a cena que a seguir descreverei: A abertura do arraial era no sábado à noite, e , invariavelmente abrilhantado pela Banda Marcial de Almeirim. Antes do início do baile, "até de madtrugada", a Banda Marcial dava um concerto que servia para animar a subida ao palco das fogaceiras e respectivo leilão para angariação de fundos para a paróquia e comissão de festas.
Pois bem! Estavam as fogaceiras alinhadas para subir ao palco, e qundo uma passava junto da Banda, um músico de enorme estatura (que tocava um instrmento quase tão grande como ele e que terminava num enorme funil por cima da sua cabeça), na maior das calmas, sacou a galinha da fogaceira e enfiou a dita no funil do instrumento continuando a tocar impávido e sereno. Tal ocorrência, só foi observada por um músico também já veterano e colega de comesainas do músico gigante, e por um par de olhos de menino que sentado na borda do palco tudo observava, especialmente os gestos que fazia um homem com um pauzinho na mão e a quem todos os músicos obedeciam.
A bronca rebentou quando a fogaceira subiu ao palco, e o leiloeiro fez chacota da fogaça, que nem galinha levava.
Azar dos azares, a fogaça pertencia à mulher de um dirigente do Benfica das Fazendas, que não teve dúvidas em afirmar que tinham sido os do Sporting que tinham retirado a galinhqa da
fogaça como represália por não terem sido colocadas duas varolas da festa no cruzamento do Augusto Brito (portanto território do Sporting). Reagiram os do Sporting e só não se não chegou a vias de facto porque entretanto se fez ouvir através de um microfone roufenho, a voz autorizada e autoritária do Prof Armindo Gomes (pai do actual Presidente da Câmara de Almeirim), apelando à calma, e referindo que, se não houvesse quem comprasse a fogaça ele próprio a compraria, com ou sem galinha. Serenados os ânimos, afogaça lá foi leiloada e foi arrematada pelo preço mais elevado. Sabem por quem? Precisamente pelo dono da fogaça que assim pensou ter dado uma bofetada sem mão nos do Sporting.
Terminado o concerto, a Banda dispersou e o músico gigante mais o seu amigo veterano lá se dirigiram para a taberna do Zé Caldeira, e, na companhia de mais uns amigos deram ao galinaceo o destino devido.
Consta que estava tão deliciosamente preparada que nem os ossos escaparam.
Nota final.
Mais tarde, com o menino já adulto, e em amena cavaqueira com o músico gigante, este perguntou-lhe? Então e a galinha da festa das Fazendas? Resposta do músico: então tú também viste? Sabes uma coisa? A galinha foi comida na taberna do Zé Caldeira, e convidámos o dono da fogaça para comer connosco, que comendo, não se cansava de dizer:
mas porque é que a minha mulher não faz a galinha no forno como esta?
Fartámo-nos de rir, e disse ele; a alegria do povo era contagiante, e sempre tinha um enorme prazer em tocar na festa das Fazendas. Nisso estamos de acordo.